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Que a dor não me seja indiferente

 Nos últimos dias tivemos o desfecho trágico do desaparecimento do ativista Bruno Pereira e do jornalista Dom Phillips  na Amazônia. Com a repercussão de seus assasinatos, tanto em nosso país como no exterior, reascendeu novamente a luta pelos direitos dos povos amazônicos contra a grilagem de terras, invasão e exploração de reservas indígenas e os mártires que essa causa custa. Recordamos aqui os casos do Pe. Ezequiel Ramin, do ativista Chico Mendes  e da missionária Doroth Stang  para ilustrar o quanto defender quem mais sofre tem consequências sérias, como perder a própria vida em favor dos demais. 

Padre Ezequiel Ramin, missionário católico comboniano nascido na Itália em 1953, ordenado sacerdote em 1980 e enviado ao Brasil em 1983, esteve na frente missionária no estado do Rondônia, região amazônica  onde encontrou uma acentuada situação de desigualdade social decorrente do choque entre os pequenos agricultores e os indígenas contra os grandes latifundiários que com o uso da violência grilavam as terras e se apropriavam das mesmas.  O sacerdote, inerente a sua vocação, colocou-se ao lado daqueles que sofriam, na luta pelo direito a terra, ao trabalho e a vida digna.  Neste sentido, foi perseguido e em Julho de 1985 foi assassinado em uma emboscada enquanto voltava de uma missão de paz para mediar um conflito entre os trabalhadores e latifundiários. Seu caso ganhou notoriedade por ser um padre católico, missionário naquela região tão escasso de religiosos, estrangeiro, elevando o teor diplomático da situação, tendo intervenções da Santa Sé para o caso, o governo do Vaticano, na intenção de descobrir e punir quem teria sido o executor e o mandante do assassinato do padre. Até hoje, ninguém foi preso. 

Em 1988 foi a vez de Chico Mendes. Ele, ativista, sindicalista e político lutou em favor dos seringueiros, cuja subsistência dependia da preservação da floresta e das seringueiras nativas. Seu trabalho foi reconhecido pela ONU  em favor da preservação da Amazônia. Porém, teve também elevada a ira dos fazendeiros locais que queriam desmatar para o cultivo das monoculturas e criação de gado.  Os fazendeiros criaram a chamada União Democrática Ruralista (UDR) como forma de afronta ao trabalho de Chico Mendes, o ameaçando e perseguindo. não só pelo seu ativismo, mas também por sua notoriedade no exterior e sua preferência política de esquerda.  Neste contexto, foi assassinado na porta de sua casa em Dezembro de 1988, por um filho de um fazendeiro a mando de seu pai. Pela notoriedade do caso, os mesmos foram a julgamento e até hoje Chico Mendes é lembrado com prêmios e honrarias que levam o seu nome pelo seu trabalho social. 

O último caso de maior relevância antes de Dom e Bruno foi da missionária americana e religiosa Doroth Stang. Teve sua vida dedicada ao serviço missionário no Brasil. Atuou em favor dos menos favorecidos e dos movimentos sociais ativamente, ganhando desafetos principalmente dos madeireiros, que devastavam essa região amazônica no Pará. Participou de projetos sociais, como a Comissão Pastoral da Terra (CPT) vinculada a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e acompanhou toda a vida e luta dos trabalhadores do campo, principalmente na região transamazônica no Pará. Foi pioneira, junto com a Igreja Católica na educação da região onde morava, em Anapu no Pará, criando escolas e formação para professores, sempre com o olhar em favor dos mais empobrecidos. Por esse trabalho foi assassinada em Fevereiro de 2005 numa estrada de terra á 53 km de distância da sede do município de Anapu, a mando de fazendeiros e madeireiros. Um fato inusitado de sua morte, que quando foi abordada e indagada se estava armada, ela apresentou a Bíblia como sua arma, leu alguns versículos das " Bem Aventuranças" antes de ser executada. Mais um missionário que em favor de seu povo derramou seu sangue em terras amazônicas. 

Quando nos deparamos com a situação de Dom e Bruno, nos recordamos desses casos que ganharam as manchetes e pensamos de tantos outros homens e mulheres de boa vontade que consumiram sua vida em favor daquele povo esquecido e maltratado na Amazônia. Padre Ezequiel, Chico Mendes, Irmã Doroth, agora Dom e Bruno, sua morte não foi em vão. Consumiram suas forças por aqueles que não tem mais força. Foram voz para aqueles que não tem mais voz. Sim, são mártires da Amazônia, o pulmão do mundo, mas que sangra, com tantas injustiças e tão chagado que é . Sangra com o sangue de pessoas que não mediram esforços pelo bem comum,  pela casa comum, por um pedaço de pão. 

A dor da morte deles não nos é indiferente. Essa canção, eternizada na voz de Mercedes Sosa, relata bem o que passamos hoje. Enquanto temos um governo omisso, conivente e covarde, que representa o interesse de quem oprime, ainda temos quem rompe, mesmo que com sua própria vida, essa opressão. 

Deus não desampara os seus. Tenho a crença nisso. Sempre haverá mais padres, irmãs, ativistas, e jornalistas que não se calarão diante da injustiça que ceifa a vida daquele que menos tem. 

Um dia, um certo galileu proclamou essa frase e que se tornou uma canção, que expressa bem o que é ter uma causa a lutar:

" Se calarem a voz dos profetas, as pedras falarão..." 




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